O SOM E A FÚRIA DE NAURO MACHADO
Antes de aventurar-se a falar sobre a avassaladora poesia deste poeta titânico, é bom que se diga: Nauro Machado é, sem nenhuma concessão, o último poeta brasileiro vivo realmente genial. Pertencente àquela rara estirpe canônica a que Harold Bloom chama de escritores inteligentíssimos, e que Ezra Pound (a quem Nauro se assemelha em talento e originalidade) chama de artistas inventores, que desvendam caminhos nunca dantes trilhados, descobrindo um processo criativo exclusivo, a partir do qual impõe o seu estilo único.
Pátria do Exílio, último dos três livros que compõem uma trindade dantesca de três mil versos (incluindo A Rocha e a Rosca e Pão Maligno com Miolo de Rosas), já pronto para ser lançado, é uma obra-prima desse poeta que une virtuosismo e genialidade transcendente num coroamento de um universo poético naurodiano que nos deixa impactados pela sua avassaladora beleza elaborada na mais profunda dor existencial da alma humana.
Nauro Machado, artista completo no seu árduo ofício de uma vida inteira, se supera, depois de já trinta e cinco títulos publicados, e sintetiza na sua visão dantesca, a essência de sua arte, onde a morte, Deus e a angústia do poeta cristalizam-se na mais pungente e inquietante lírica só garimpada pelos mestres iluminados e obcecados pelo rigor da palavra lavrada para ser eterna e reveladora da mais rara estética, ainda que forjada na solidão e no exílio em si mesmo. “E há poetas que são artistas/ E trabalham nos seus versos/ Como um carpinteiro nas tábuas!…”, diria Fernando Pessoa, acrescentando que em Nauro, um poeta à altura do vate português, além da técnica afiada e refinada, há uma fornalha de metáforas, onde melopéia (aspecto sonoro), fanopéia (predominância da imagem) e logopéia (a dança do intelecto) compõem a furiosa dicção naurodiana, oração sacra e dessacralizante a ecoar pelos abismos do ser diante do nada como resposta do Pai ao filho que ousa sondar as profundezas incognoscíveis da nossa existência precária e niilista.
“E eis que, num barco, um velho com nevadas/ barbas, perto de nós apareceu, exclamando: ‘Ai de vós, almas danadas!’. Como no próprio Dante (inferno, III, 84/4) Nauro Machado arrasta os seus tormentos pelos círculos dantescos da ilha de São Luís, expiando os pecados de quem interroga com veemência sacrilégica o porquê dos paradoxos existenciais que nem a filosofia nem a ciência respondem, e Deus, o único guardião das respostas, permanece mudo aos gritos do poeta, vociferando em poesia incandescente ao Universo que não responde. É a busca metafórica do verbo, da palavra viva a transmutar-se, na angústia, em arte. “Ó São Luís, onde me meto/ Agora, como se em chinelos,/ Como se em morto soneto/ Todo podre em versos belos,/ Terno cinza, quase preto,/ De ombros puídos, amarelos,/”.
Com uma engenharia poética particularíssima elaborada na alquimia onde só um T. S. Eliot, Mallarmé, Rimbaud ou Baudelaire conseguem desvendar e nela embriagar-se, o poeta Nauro, como a roubar da abelha e da aranha a ciência da tessitura, alinhava os seus versos traspassados de angústia, solidão e tormento existencial. Então, o som e a fúria inaudita de sua sinfonia poética elevam-se aos céus, despertando a mudez divina com a melodia dorida de toda a humanidade a interrogar ao Pai o sentido da vida que ele nos oferta e nos nega no absurdo da morte, exatamente quando tomamos a consciência de que existimos e ansiamos pela eternidade. “Acrescento ao meu fim breve,/Numa existência tão rápida,/A forma que, embora leve,/Pesa tanto em fome tão ávida,/ Dizendo à morte: há Vida!”.
Mas não se questiona Deus impunemente. O preço da dúvida existencial é a angústia lancinante na solidão do mais profundo silêncio sem resposta e sem eco. E é nesse deserto de vozes, nessa descomunal mudez branca que a poesia angustiante e angustiada do poeta clama, querendo a imortalidade do verbo, já que o homem – Nauro – sabe-se cadáver adiado apodrecendo ao sol, como se já nascido câncer, como a flor que desabrocha, não para a vida terna, mas para o inevitável pó eterno. Ou não, daí a fúria do poeta, onde a grande maioria dos homens simplesmente aceita o fatal destino ou refugia-se na cega fé crendo em Deus, exatamente porque é absurdo.
Onde a filosofia tergiversa, onde a ciência qual lesma busca o infinito, Nauro reverbera com liras e trombetas a dor do existir sem a mínima certeza do devir. E como um anjo decaído, desmemoriado dos paraísos improváveis, o poeta Nauro ergue a sua catedral de versos, sua grandiloqüente canção, tal qual um vulcão incandescente de palavras (palavras de fogo) que, às vezes, só Deus sonda, tal é a agudez de sua freqüência, inaudível ao senso comum dos mortais comuns: “Certas palavras rimam vida e morte,/Sexo e pedra, pênis e gruta. Palavras!/Certas palavras liberam diamantes”.
Nauro expressa a dor do homem abandonado por Deus num mundo hostil de angústia e solidão. Uiva poeticamente a dor do filho perdido na consciência crua da morte sem resposta do antes e do depois. E ainda assim, para que a dor seja concreta e azucrine na eternidade, sua poesia assume a musicalidade dos anjos perdidos, a linguagem de um anjo esquecido e ferido que pede clemência ao criador, nessa dor de ignorar o nosso próprio destino. “Ó sol ardendo como acha/ Para este inferno em que me acho,/Ó lenha azul que se racha/ A queimar comigo embaixo,/Dentro de mim, numa caixa/ Com fogo ardendo debaixo!”.
Cumpre-se assim, com Pátria do Exílio, este último ato da trindade dantesca de Nauro Machado, a profecia do próprio poeta, oráculo de si mesmo: a premonição de que a sua via crucis de uma vida inteira a carregar a sua cruz existencial em direção a Deus, o ressucitará mil vezes para a imortalidade da língua portuguesa, para além da ilha em que se exila, às vezes sob o escárnio da mediocridade provinciana e tantas vezes esquecido pela contemporaneidade literária brasileira, arrogante em sua vaidade, mas sem a aura criadora do maior poeta vivo do Brasil. “Sou ímpar em mim e par em Deus…/Só na noite nasço para sempre.”