CARAMUJOS
Tudo aconteceu quase sem a gente perceber,
assim como as flores
quando começam a murchar.
Primeiro deixamos de contar estrelas,
depois não vimos mais a lua,
até que nem mais erguíamos a cabeça
para olhar o céu.
Retraídos, reduzidos a um quarto,
nos recolhemos cada um em sua concha.
E como caramujos
não apertamos mais as mãos um do outro
(porque nos algemávamos).
Não mais dormimos abraçados
(porque fazia calor).
Não mais nos tocamos
(porque incomodava).
E de tanto nos retrairmos,
não mais nos ouvimos,
cada um conversando consigo mesmo
coisas quilometricamente distintas.
E assim sendo, ficamos mudos.
Tão completamente calados,
num silêncio tão profundo,
que esquecemos o mais sagrado:
o simples direito de dizer não,
procurar outro caminho
e tentar nova paixão.
REAÇÃO
O homem mata o verde
e o verde mata o homem.
Porque a natureza nunca perde,
quem a crucifixa ela consome.
CANTO PLURAL DE UM POETA SOLIDÁRIO
Acompanho há muito tempo, ao contrário dos meus companheiros de geração, ou mesmo daqueles mais velhos ou novos, detentores de uma abertura crítica capaz de manifestar-se sobre os livros de poesia lançados em nosso meio, o laborioso produto lírico, sob certos aspectos à contramão da poesia maranhense atual, executado com pertinácia exemplar por Alex Brasil.
À pergunta, que se impõe logo, de como classificá-lo entre os poetas de sua faixa geracional (como os incluídos no Movimento Antroponáutica, o mais forte daqueles surgidos no Maranhão nos últimos anos) ou entre as mais novas expressões da poesia hoje feita em São Luís, poderia contrapor, para excluí-lo de todos eles, nos seus pressupostos variáveis e contudo de fácil identificação por quem lhes conhece as características individuais, o módulo peculiar de sua discursividade de crua revolta social, alavancada por singelo sopro de conotação amorosa.
Convém ressaltar logo, para a compreensão dessa obra até há pouco subestimada erroneamente pelos que a não conhecem, dela se fazendo omissos leitores, por preconceito de classe ou pruridos de uma falsa erudição acadêmica, que o percurso nela desenvolvido se fez por acréscimo de uma releitura pessoal do nosso tempo em suas perplexidades e revoltas. O que se constata de imediato pelos títulos dos seus 15 livros publicados e que se ativeram ao desdobramento contíguo de temas e subtemas de uma contemporaneidade a desaguar na corrente sanguínea da sua visão pessoal de cidadão e poeta.
Alex Brasil, dono de antenas subterrâneas, canta em seus versos a problemática da solidariedade de um homem livre do absenteísmo daqueles que não querem ver, ou muito menos ouvir, os clangores e os roncos famintos dos horizontes massacrados.
Ele também, o que é raro entre nós, canta a mulher como se estivesse a falar de uma forma despojada da sua finitude corporal. Até mesmo a irremissibilidade física da mulher, como presença destinada à decrepitude dos anos, é estranha à estrofação do seu verbo.
Também nenhuma ingerência de dúvida metafísica, por mais periférica que seja – excetuando-se a substantivação nominalista do Ser arraigado inconscientemente em nossos balbúcios vocabulares –, lhe subjaz ou arrima nesse canto executado sem qualquer angústia ontológica, por ser, a sua, uma angústia exclusivamente social.
Alex Brasil é um poeta realista: o que lhe aciona o canto pertence a uma visão entreaberta pela presença de homens e de mulheres desprovidos da mínima esperança remissiva, passivos donos que são de uma imensa carga injusta e opressora. Homens e mulheres que ele desejaria tornar livres e belos através do utópico desejo revolucionário de seu canto estruturado com rimas do nosso cancioneiro popular.
Daí o passo que ele dá a seguir, além do seu projeto inicial, para chegar ao desejo unanimista de uma democracia firmada, como gerenciamento coletivo, pela presença não mais utópica do Universo. A própria liberdade, que ele chama insistentemente nos seus versos, é uma presença física de contornos carnais.
Poderão, alguns críticos formalistas, arguir que a sua arte possui uma formulação não intelectualizada ou profunda, esquecendo-se eles dos propósitos normativos do homem-criador que a elabora e ejacula como um produto orgânico pela estrofação espontânea de suas células nervosas.
Outra atipicidade que lhe caracteriza o paradoxal torneio poético é o fato de ele, além de reunir numa linguagem a todos acessível a mensagem e o desejo, o ideário e o real, nessa liça onde o corpo feminino é a prenda a ser conquistada, apresentar-se publicamente sem a terminologia vocabular própria daqueles que têm por fim a erotização poética dos instintos. Ele cultiva o corpo à maneira de um romântico moderno, como um utopista a ver na mulher um ser superior e na massa plebeizada a fecundação de um sonho tornado mais amplo pela idealização humano-social dos seus olhos.
Sua poesia é feita assim à margem de qualquer rio ou mar escatológico, pois ele não vê um possível fim como alívio a advir na sucessão dos dias, preferindo verberar, na sua condição de homem preso à sua hora, contra o impossível fim dos tempos.
Com o teor certo da sinceridade autêntica, ele é como o cantor de uma instantaneidade a não fugir da urgência apeladora do momento, erguendo sua voz sobre os chãos de uma terra por ele chamada de “pátria amarga, Brasil”.
Sendo também um competente mestre da propaganda, Alex Brasil é um expert antenado com as forças dinâmicas da civilização contemporânea. Seus versos são o resultado dessa ingerência forjadora de normas e conceitos em tudo opostos aos daquelas “novas anatomias vocabulares”, propostas e criadas pela ambição desmedida e genial do poeta Hart Crane.
Seus versos são assim os flashes luminosos de anúncios que se apagam e acendem ziguezagueando como testemunhas de uma pobre engrenagem humana a vagar no seu vaivém diuturno, entre desejos prementes e esperanças talvez frustradoras de um final feliz.
Nauro Machado
Poeta e ensaísta
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ALEX BRASIL: UM POETA E A POESIA
Ao longo da história dos homens, a poesia sempre foi um dos modos privilegiados de se dizer a própria dor, as alegrias, tristezas. Entre os gregos e os romanos, existiam mesmo tipos de composições diferentes para se celebrar as festas de casamento, se chorar a morte, se comemorar uma vitória na guerra: os epitálamos, as nênias, os peans traduziam a esperança, o luto, o júbilo de instantes únicos na vida de indivíduos ou de uma nação. O poeta era, desse modo, um intérprete de seu povo e ao mesmo tempo uma voz individual. A poesia era ocasião de entregar aos demais uma certa visão do mundo, um certo jeito de sentir muito particular, que uma linguagem especial tornava coletiva: voz de um, tornada voz de todos, a poesia era essencialmente comunhão.
Com o passar dos tempos, paulatinamente, uma separação se instalou entre o poeta e seu povo. Aquele já não é mais profeta ou o intérprete, este nem sempre se reconhece na fala elitizada de quem se recolhe, tantas vezes, na Torre de Marfim sonhada por alguns românticos.
Mas, vez em quando, uma voz se levanta, falando em nome dos que não têm voz nem vez. Alex Brasil é uma dessas vozes engajadas com o destino de seu país, de seu povo. Realizando uma poesia sem muitos artifícios, ele expressa com simplicidade, como se conversasse com o leitor, o amor, a revolta diante da injustiça que nos cerca. Seu olhar sobre as coisas é de simpatia e compaixão, de interrogação. Finalmente, que é o amor, finalmente por que amamos, finalmente por que queremos a essa pátria tão despatriada, como o diz Mario de Andrade? Essas interrogações nem sempre são respondidas, evidentemente, mas já vale sua colocação no espaço do poema.
Atento às palavras, material de trabalho do poeta, não raro Alex desconstrói o uso que fizemos delas, como quando relê trecho do Hino Nacional, em que a pátria amada se torna mãe senil e pátria amarga, para muitos brasileiros.
Cecília Meireles dizia que não há muito a se dizer sobre um poema. Que pede para ser lido e, se possível, ser amado. A poesia de Alex, descontraída mas sensível, engajada com o estar aqui e agora do poeta, que é também o nosso, aí está como oferta para os olhos e o coração do leitor. Pedindo uma leitura e o nosso compartilhar com o olhar amoroso que sobre as coisas lança o poeta, este que apresenta um momento de comunhão e de beleza sobre nosso duro quotidiano de brasileiros.
Luzilá Gonçalves Ferreira
Romancista, ensaísta e professora da UFPE
O SEXTO SENTIDO DO POETA
Para Jules Lamaître, em Les Contemporains, a crítica literária é o exercício de julgar-se “bom aquilo de que se gosta”. Significa dizer: o gosto pessoal, a visão pessoal, acima da verdade histórica e até científica. Seria a exaltação da individualidade e, obviamente, o predomínio de conceitos meramente impressionistas; o não agredir, nem transgredir, impondo-se como suportes da beleza, no sacrário da devoção burguesa e, por extensão, da obediência ao establishment. Em termos jurídicos, seria o retorno aos princípios de Cesare Lombroso, com a “boniteza” servindo de elemento constitutivo do bem, enquanto a fealdade, no extremo oposto, formaria o pórtico negro da impostura e do mal.
Mas, ainda que deixemos Lamaître de lado, não se pode ignorar que, tanto na crítica de fundamento sociológico, quanto na outra, praticada pelos cultores da hermenêutica de base ontológica, o poeta Alex Brasil teria o mesmo destino que vem tendo Lautréamont que, para Albert Camus, por exemplo, não passa de exibicionista maluco, enquanto que para outros – e a esses junta-se Léon Bloy – Os Cantos de Maldoror são “de beleza pânica, surpreendente” e que, por isso, não se enquadram nos nossos limitados padrões estéticos, subordinados aos paradigmas da moral e da ética.
Mas, se Lautréamont era poeta louco, capaz de desafiar os estudiosos ocidentais, tinha a lucidez de afirmar: “A poesia deve ter por objetivo a verdade prática”. E é justamente essa norma que Alex Brasil tomou como premissa. Navega pelo poema até a exaustão, impulsionado não por romântica inspiração, que induziria ao belo, mas pela revolta que se confunde com a loucura, de ver o erro e a injustiça, naquilo que o sistema contabiliza como justo e certo.
O poema emblemático do livro intitula-se Poeta é povo e, à primeira vista, parece mero versejar de sabor político, relembrando os tempos da utopia marxista. Em leitura mais atenta, a névoa demagógica se esgarça, cedendo lugar à poética de raízes universais. E com elas ecoa o grito de protesto, sem as clássicas reivindicações do ser e do existir. Trata-se de manifestação clara e brutal, muito próxima da postura de Lautréamont que, em Os Cantos de Maldoror, atira-se contra o sagrado que o fez poeta consciente de suas dores, mas ignorante quanto ao mágico processo da cura.
A revolta de Alex Brasil não é a coisa que se possa avaliar nem no bojo da “verdade prática”, proposta por Lautréamont. Seu berro de contestação, misto de ódio e amargura, tem as cores da transgressão absoluta e, curiosamente, não induz à inação do pessimismo. Sugere, isto sim, o revolver do espírito, da razão, da inteligência orgânica: é telúrico e é sideral.
O poeta Alex Brasil tem consciência dos pés fincados no lodaçal do planeta Terra, mas a flor de lótus da poética que pratica, ilumina de cores vivas as profundezas da estratosfera, com suas janelas de perplexidades, abertas sobre os buracos negros do infindável.
Por isso, ele adverte: “… Se a cidade concreta / dorme nessa hipocrisia / é o poeta que a desperta / com o punhal da poesia”. E, mais adiante, fechando o arco de obsessiva contestação: “O poeta é raça / não é só emoção / ele luta na praça / nas ruas sangra o coração”.
No sonho do poeta os “homens brigam por Deus”, e com Deus, pois o coração, “ora anjo / ora bandido”, nos leva a entender que “somos culpados / e somos inocentes”. Além disso, ainda que tenhamos a postura de cordeiros, também agimos como lobos, a “ranger os dentes”. Entre os instantes de revolta que marcam Pátria Amarga, Brasil, nenhum suplanta este desabafo: “Quando vi Cristo ser crucificado / durante dois mil anos / deixei de ser apóstolo da paz…”
O resenhador de livros, habituado à “literatura de orelhas”, corre o risco de quebrar a cara, se apontar esta obra como “cartilha extremista”, a defender princípios de força ou regimes de exceção. Seria uma visão estreita sobre este poeta que optou por um código de comunicação, sem rebuscados estilísticos e, muito menos, pretensões metafóricas.
A linguagem jornalística deixa entrever a ligação que existe do seu trabalho com a oralidade do cordel. Mas, vencendo-se a crosta do “prosaísmo”, se assim podemos dizer, deparamo-nos com o pensador, exercitando a dialética da rebeldia. É bom lembrar que, estranhamente, em meio ao contagiante instante de catatonia em que vivemos, os acontecimentos políticos mundiais indicam na direção do “social plural”. O velho Estado nacionalista, de perfil ainda feudal, acabou. Inicia-se a caminhada rumo à globalização e, mais uma vez, não estamos preparados para a prova, que terá caráter eliminatório.
Diz o historiador Paul Kennedy que o Estado, hoje, por ser grande demais, já não consegue impor-se a certos desafios do futuro. De outra parte, é infinitamente pequeno e impotente, diante dos problemas que fogem aos registros tradicionais da moral e da ética.
Curiosamente, as contradições de que nos fala Kennedy, no seu importante Ascensão e queda das grandes potências, estão contidas nas inquietações de Alex Brasil. Esse fato o coloca entre os primeiros a sintonizar-se com os estatutos da “aldeia global”, a ser oficialmente inaugurada no próximo século, para vigorar por todo o terceiro milênio.
José Louzeiro
Romancista, jornalista e ensaísta